Forma muito recente, sobretudo quando comparada com outras cujas origens
ou cujos antepassados remontam aos primórdios da criação literária, o poema em
prosa carece de uma coesão formal e temática que o especifique e o diferencie
satisfatoriamente em relação às outras manifestações literárias – isto é, que o
estabeleça como gênero autônomo. Se, por um lado, grande parte dos críticos
atuais partilha a idéia base de Suzanne Bernard, segundo a qual “o poema em
prosa é um gênero distinto: não um híbrido a meio caminho entre a prosa e o
verso, mas um gênero particular de poesia” (BERNARD, 1959, p. 407), por outro,
os seus estudos confrontam-se com sérias dificuldades quando se trata de
encontrar parâmetros classificativos unitários, capazes de recobrir a
generalidade dos variados textos que se agrupam sob a designação de poema em
prosa.
Tal constatação poderá, então, explicar a escassez, mesmo nos nossos
dias, de estudos dedicados à busca e à determinação da especificidade do poema
em prosa como um todo. E, ainda, que essas obras sejam, tão freqüentemente,
alvo de contestações e de críticas que as acusam de serem ou redutoras em
excesso, ou, pelo contrário, abrangentes em demasia.
É o que ocorre com a ambiciosa obra de Bernard, que é, ainda hoje, o
ponto de referência principal de todos os estudos acerca do poema em prosa, mas
à qual se aponta (como faz Tzvetan Todorov, no ensaio “A poesia sem verso”) os
limites de seus critérios de especificação global; assim acontece também com a
generalidade dos textos que pretendam determinar traços comuns dos poemas em
prosa pertencentes a autores diversos. Deste modo, a situação dos estudos
específicos sobre as características essenciais e os objetivos do poema parece
continuar a ser aquela que Michael Riffaterre aponta em “Semiótica da poesia”:
Os estudos sobre o poema em
prosa se restringem, geralmente, a analisar os textos que se apresentam como
tal. (...) Eles chegam mesmo a mostrar em que se diferem foneticamente do
discurso literário em geral, e chegam a definir os princípios que caracterizam
o poema em prosa. (RIFFATERRE, 1983, p. 148)
A dificuldade de descrever o poema em prosa provem, em grande parte, da
própria expressão que o designa. Desde o início, tal “gênero” afirma se mover
não nos limites de uma mera estratificação genérica, mas antes nos terrenos
extremamente escorregadios e flutuantes das noções básicas de poesia e prosa, o
que implica que nele estarão em jogo todos os dados que intervêm no campo da
criação literária. Tentar entender o poema em prosa exige reavaliar conceitos
de escrita poética, os objetivos que ela persegue, as técnicas e os processos
que pode utilizar, a diferenciação (ou não) de uma prosa poética em relação a outras
prosas, dentro ou fora da literatura etc.
Foi esse desejo de aprofundar a verdadeira essência do poético e de
testar a resistência da sistematização literária clássica que, no século XVIII,
lançou as bases para o surgimento do poema em prosa. É essa motivação ambiciosa
e contestatória que continua a fazer dele uma forma em constante mobilidade e
em variadas manifestações.
Assim sendo, aquilo que de mais específico e indiscutível se pode dizer
do poema em prosa redunda na tautologia com que Henri Meschonnic se confronta: “O poema em prosa é um poema e ele é em
prosa. [...] Parte das palavras e do conhecido. Empacamos aí. A parte
desconhecida do poema em prosa permanece no desconhecido.” (MESCHONNIC, 1982,
p. 612, tradução nossa ).
A própria idéia freqüentemente aceita de que o poema em
prosa é um gênero distinto e autônomo pode revelar-se traiçoeira, ou, pelo
menos, passível de controvérsia. Pelo diálogo que vai travando com outros
gêneros que lhe são próximos e com os quais muitas vezes é confundido, e,
sobretudo, por equacionar todas as questões no largo espaço da escrita em
geral, o poema em prosa contesta, fortemente, a eficácia e a funcionalidade de
um sistema genérico tal como nos habituamos a considerar em nossa tradição
literária.
Essa parece ser sua principal e mais contrastante vocação: a de combater
incessantemente qualquer estatismo ou tentativa de classificação definitiva.
Nascido sob o signo da liberdade, o poema em prosa foi sempre o arauto da
contestação e do movimento. Toda vez que julgamos poder fixá-lo, ou de alguma
forma rotulá-lo, ele escapa por entre as definições, apresentando-nos novos
textos que nos obrigam a rever antigas questões.
Assim sucedeu no século XVIII, quando a expressão “poema em prosa”
revolucionava os cânones pré-estabelecidos e rígidos da criação poética. Nesse
contexto, o poema em prosa era considerado um absurdo de realização impossível
(uma vez que os conceitos de poesia e de prosa se excluíam mutuamente), ou
então, era tomado por um híbrido defeituoso que não encontrava lugar no claro e
organizado sistema genérico do classicismo.
Tal como outros gêneros, o romance também precisou de um lento e
gradativo processo de afirmação para ser reconhecido com seriedade. O caso do
poema em prosa, no entanto, mostrava-se mais delicado, uma vez que pressupunha
a ligação íntima de dois termos tradicionalmente tidos como opostos e
inconciliáveis.
Hodiernamente, já não temos a consciência do quão paradoxal e
contraditória possa ser uma expressão como “poema em prosa”, habituados que
estamos à idéia de que a poesia não implica necessariamente a escrita em verso.
Contudo, sempre que nos debruçarmos sobre o poema em prosa, acabamos por nos
deparar com esse espírito de contradição que lhe é inerente. Assim, para Suzanne
Bernard, “ele se baseia na união de opostos: prosa e poesia, liberdade e rigor,
anarquia destrutiva e organizadora da arte... daí a sua contradição interna;
daí as suas antinomias profundas, perigosas – e férteis; daí a sua perpétua
tensão e dinamismo” (BERNARD, 1959, p. 434). Seguindo a mesma linha, Riffaterre
afirma que “o que caracteriza o poema em prosa é o fato de que seu surgimento
contém em germe uma contradição dos termos” (RIFFATERRE,1983, p. 157), e
Todorov, centrando-se no exemplo elucidativo de Baudelaire, vê nos seus poemas
em prosa “uma forma adequada (uma correspondência) para uma temática da
dualidade, do contraste, da oposição” (TODOROV, 1987, p. 70).
Sendo assim, a rebeldia, que foi se acentuando ao longo de século XVIII,
e ainda nas primeiras décadas do século XIX, contra a obrigatoriedade
exclusivista de um código de escrita (o verso), não passava senão de uma
primeira manifestação da literatura moderna em busca de novas experimentações e
transgressões contraditórias.
À medida que foi se desenvolvendo, o poema em prosa demonstrava que
outras junções novas eram ainda possíveis, uma vez que os dois conceitos base
sobre os quais se apóia não param também de assumir novas facetas e de sugerir
novas interpretações. Quando, já no século XIX, se começou a afirmar uma prosa
poética baseada no ritmo musical e harmonioso da frase e dos parágrafos, os
poemas em prosa de Baudelaire vieram apontar a velha questão da verdadeira
essência da expressão poética, apresentando uma prosa que ele pretendia lírica
e musical, muito embora, “sem ritmo e sem rima”. E quando se busca a idéia da
poeticidade já não tanto na harmonia e no ritmo musical, mas no trabalho
simbólico das palavras e na expressividade das imagens (a poiesis), novamente o poema em prosa se transforma,
concretizando-se em textos que recusam esses processos – por exemplo, com o
recurso de uma prosa aparentemente despojada de valor expressivo, na sua nudez
estilística e na sua sintaxe linear, que, por sua vez, recoloca a questão da
diferença entre a prosa literária e a não literária. Ou então, quando a poesia
parece se identificar essencialmente com a expressão lírica, o poema em prosa
revela-se como um veículo de narratividade ou ironia crua.
O que se revela mais importante no poema em prosa é a sua inesgotável
capacidade de fazer refletir a respeito da poesia e da prosa e de quantos mais
conceitos forem intervindo na seara literária. O poema em prosa existirá
enquanto for possível desafiar o estado de ordem do universo literário. Ele
propõe, acima de tudo, a idéia de liberdade, ou de libertação, como motor da
criação literária.
Conseqüentemente, a possibilidade de se determinar e de se conhecer a
essência formal constante e genérica do poema em prosa vê-se comprometida.
Funcionando por sucessivas contradições paradoxais, o poema em prosa vai
fazendo também sucessivas e incessantes recusas, o que implica que não possa
ser classificado senão através da exclusão, através não daquilo que é, mas
daquilo que não quer ser. O fato de se tratar de um poema em prosa não
determina rigorosamente nada, uma vez que essa prosa pressupõe variadas
características e finalidades, tão moldáveis quanto as pressupostas pelas
noções de poema e poesia. Deste modo, dizermos que determinado poema é um poema
em prosa significa dizer que ele opera algum tipo de contestação contra o que é
usual em literatura, e que ele é, principalmente, um poema em não-verso, ou em
não-ritmo ou em não-rima, conforme exemplificação de Riffaterre (RIFFATERRE,
1983, p. 161).
É também nesse sentido que Benoît Conort vê o poema em prosa na
genealogia, como contestação na noção de gênero, como pulverizador do sistema
genérico, o poema em prosa apresenta-se como “limite de todos os gêneros e como
gênero não absoluto” (CONORT, 1992, p. 54).
Obrigando, assim, os estudos acadêmicos a um constante retorno aos
primórdios e pondo constantemente em xeque tudo aquilo que na literatura se
tomava por certo ou indiscutível, o poema em prosa torna-se não somente um
lugar de liberdade, mas de conscientização da escrita. Isto é, o poema em prosa
exige uma escrita que se assuma em todas as suas possibilidades expressivas e
que tire o máximo partido delas, ainda que (ou sobretudo) utilizando os mais
inesperados recursos ou aqueles que de início pareciam mais ineficazes para
exprimirem o poético.
BIBLIOGRAFIA:
BIBLIOGRAFIA:
BERNARD, Suzanne. Le
poème em prose: jusqu’à nos jours. Paris: Librarie A.-G Nizet, 1959.
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em prose au carrefour de la modernité: problématiques”. In: Anais da UTAD,
vol,4, n.1, dez. 1992.
LIMA, Luís Costa. “A
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2.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.
MESCHONNIC, Henri. Critique
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RIFFATERRE, Michael. A
produção do texto. Trad.
Eliante Paiva. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
__________. Sémiotique de la poèsie. Paris:
Le Seuil, 1983.
SANDRAS, Michel. Lire
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STAIGER, Emil. Conceitos
fundamentais de poética. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975.
TODOROV, Tzvetan. Os
gêneros do discurso. Trad. Elisa Angotti Kossovitch, São Paulo: Martins
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___________ .
“Poética e crítica”. In: A poética da prosa. Trad. Maria de Santa Cruz.
São Paulo: Martins Fontes, 1979.
VADÉ, Yves. Lês
poèmes em prose et sés territoires. Paris: Belin, 1996.
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