Este é mais um caso de artista que comeu o pão que o diabo
amassou e cuja obra só obteve reconhecimento postumamente. João da Cruz e Souza
foi um dos poetas sobre os quais tratei na minha dissertação de mestrado (os
outros foram Baudelaire e Raul Pompéia). Por isso, posso dizer que me sinto
íntima dele. #metida
Lembram da vida conturbada do angustiado, porém genial,
Baudelaire? Pois com Cruz e Souza veremos a novela toda de novo. Esse
catarinense, nascido em 24 de Novembro de 1861, era filho de escravos
alforriados e foi apadrinhado pelo ex-senhor de seus pais, o Marechal Guilherme
Xavier de Souza, de quem adotou o sobrenome. A esposa do Marechal, Dona
Clarinda, não tinha filhos e cuidou com esmero da educação do menino que
aprendeu latim, francês e grego, e que foi discípulo do naturalista Fritz
Müller. Essa é a parte boa da história.
Apesar de seu brilhantismo, Cruz e Souza teve algumas
portas fechadas por ser negro. Foi recusado para o cargo de promotor de Laguna,
sua cidade natal, e desprezado por uma pianista por quem era apaixonado.
Essa discriminação inspirou-lhe para a composição de um
dos seus mais famosos textos, o poema em prosa “Emparedado”.
Não! Não! Não! Não transporás os pórticos milenários da vasta edificação do Mundo, porque atrás de ti e adiante de ti não sei quantas gerações foram acumulando, acumulando pedra sobre pedra, pedra sobre pedra, que para aí estás agora o verdadeiro emparedado de uma raça. Se caminhares para a direita, baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira, te mergulhará profundamente no espanto! Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto! Se caminhares, enfim, para trás, ah! ainda, uma derradeira parede, fechando tudo, fechando tudo — horrível! — parede de Imbecilidade e Ignorância, te deixará num frio espasmo de terror absoluto...E, mais pedras, mais pedras se sobreporão às pedras já acumuladas, mais pedras, mais pedras... Pedras destas odiosas, caricatas e fatigantes Civilizações e Sociedades... Mais pedras, mais pedras! E as estranhas paredes hão de subir, — longas, negras, terríficas! Hão de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até às Estrelas, deixando-te para sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu Sonho...
A história familiar do poeta é bastante triste. Ele se casou
com Gavita Gonçalves, com quem teve quatro filhos. Todos os seus
rebentinhos faleceram devido à tuberculose e Gavita acabou enlouquecendo.
Tendo dirigido o jornal Tribuna Popular - com o
qual combatia a escravidão e o preconceito racial - e trabalhado como
arquivista na Estrada de Ferro Central do Brasil, Cruz e Souza viveu de forma
muito modesta durante a vida adulta. Foi na literatura que demonstrou seus
verdadeiros prodígios, tendo inaugurado o movimento simbolista em nosso país
com a coletânea de poemas Broquéis (1893). A
notoriedade obtida com os livros, no entanto, não foi suficiente para melhorar a sua
condição financeira, porque poucos compreenderam seus poemas. Num período em
que predominavam textos cuja referência ao mundo exterior era muito óbvia (escolas realista, naturalista e parnasiana), os versos subjetivos, vagos e sugestivos de Cruz e Souza encontravam pouco espaço por onde ecoar.
O poeta seguia uma tradição baudelaireana que associava a temática
mais grotesca, sensual, maldita e assustadora com outra mais mística e
castiça.
(...)
Lésbia nervosa,
fascinante e doente,
Cruel e
demoníaca serpente
Das flamejantes
atrações do gozo.
Dos teus seios
acídulos, amargos,
Fluem capros
aromas e os letargos,
Os ópios de um
luar tuberculoso...
(“Lésbia”)
(...)
Do espaço pelos
límpidos velinos
Os Astros vieram
claros, cristalinos,
Com chamas,
vibrações, do alto, cantando...
Dos santos óleos
no luar envolto
Teu corpo era o
Astro nas esferas solto,
Mais Sóis e mais
Estrelas fecundando!
(“Em sonhos”)
A necessidade de ascensão ao mundo espiritual era
um de seus principais temas, com alusões ao Infinito e muitas referências à
brancura. Esse último recurso, explorado à exaustão em pelo escritor, deu
margem a uma série de especulações. Há quem diga que sua obsessão pelo
branco advenha do preconceito racial por ele sofrido. Há, no entanto, quem
a atribua à desilusão com o universo terreno, como uma metáfora da busca
pela paz suprema no além vida.
(...)
Dos etéreos
turíbulos de neve
Claro incenso
aromal, límpido leve,
Ondas nevoentas
de Visões levanta...
E as ânsias e os
desejos infinitos
Vão com os
arcanjos formulando ritos
Da Eternidade
que nos Astros canta...
(“Siderações”)
Os simbolistas tratavam a poesia como uma via para o
milagre espiritual. Disso decorre, por exemplo, a musicalidade intensa,
bem como a repetição de sons vocálicos e consonantais, a fim de aproximar os
versos de um mantra sagrado.
Vozes veladas,
veludosas vozes
Volúpias dos
violões, vozes veladas
Vagam nos velhos
vórtices velozes
Dos ventos,
vivas, vãs vulcanizadas
(“Violões que
choram”)
A exemplo, ainda, de Baudelaire, Cruz e Souza desenvolve o
formato poema em prosa, com os livros Missal (1893) e Faróis
(1900).
Em 1898, Cruz e Souza, pobre, desvalorizado e vítima da
tuberculose, viaja para o município mineiro de Antônio Carlos a fim de se
tratar. Falece três dias depois e seu corpo é enviado de volta ao Rio de
Janeiro de trem, num vagão de carga para animais e sem os cuidados necessários.
Como o poeta era carente de recursos, teve seu sepultamento custeado pelos
amigos, dentre os quais, José do Patrocínio.
A escola simbolista adotada pelo escritor encontrou pouca
ressonância no Brasil, embora tenha sido, em Paris, a precursora das vanguardas
modernistas. O reconhecimento dos versos de Cruz e Souza ocorreu com
imperdoável atraso, embora houvessem teóricos que o ombreassem com Rimbaud e
Mallarmé, simbolistas franceses. É uma
associação justa, ainda que ousada, e embora o poeta não tenha obtido a
iluminação que tanto louvou e desejou em vida, legou-nos o brilho comovente de
sua bela obra.
2 comentários:
Já leu o "Claros sussurros de celestes ventos", do Joel Rufino?
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