Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver,
loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao
mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira,
mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas
romanas explodindo como aranhas através das estrelas .
(Jack Kerouac)
Descobri os romances do Kerouac tardiamente. Tê-lo
conhecido na adolescência teria feito total sentido, e quem me conhece e já leu
o autor seria capaz de jurar que eu era sua leitora já naquela época. Não era.
E tê-lo descoberto no meado dos vinte me deixou com um sabor de nostalgia na
boca. É que Kerouac é o autor de On the road, a bíblia dos
hippies. Seria inspirada nesse livro que a contracultura instauraria a
santíssima trindade sexo-drogas-rock’roll e os ideais de multiculturalismo,
liberdade sexual, wanderlust.
Como tenho um passado ripongo, amo pegar a estrada e injetar doses fortes de
(calma, gente!) rock na veia, tenho um carinho especial pelos livros dele.
KEROUAC E A BEAT GENERATION
Nascido em 1922, o
norte-americano de ascendência franco-canadense, Jean Louis Lebris de Kerouac,
fez parte de uma geração de artistas conhecida como Beat. Após a Segunda
Guerra Mundial, o mundo vivia num clima de intolerância, preconceito, de
retração social e cultural. Nos Estados Unidos, predominava uma paranóia
anticomunista que motivou a doutrina Truman e a Guerra Fria, a caça às bruxas
macarthista e todo um posicionamento conservador e moralista que tendia a
controlar e repreender a cultura, a vida sexual, a conduta civil de maneira
geral.
Entre 1943 e 1945, reunia-se uma
galerinha em Nova Yorque, centralizada na Universidade de Columbia, que andava
bem insatisfeita com esse climão e que começou a se mexer no sentido de fugir
dessa nhaca e experimentar vivências mais significantes. Jack Kerouac era um
deles.
Quando pequeno, Jack só falava o joual,
um dialeto franco-canadense, e só começaria a aprender o inglês aos seis anos.
Ingressa na faculdade graças a uma bolsa para jogar futebol, mas abandona dois
anos depois, devido a uma briga com o treinador. Em 1942, junta-se à Marinha
Mercante e dá início às suas numerosas viagens. No ano seguinte, alista-se na
Marinha, onde fora dispensado por razões psiquiátricas.
No período em que estava na
universidade conhece os confrades Allen Ginsberg (Uivo),
Willian Burroughs
(Almoço Nu) e Lucien Carr, com quem comporia o primeiro germe da
Geração Beat. Nos anos subseqüentes, conhece Hal Chase, Neal Cassady, Carl
Solomon e Gregory Corso, um pessoal que engrossaria o caldo do bando que estava
prestes a chacoalhar a cultura norte-americana.
Ainda que nem todos seguissem a carreira literária, esses
rapazes tinham um comportamento singular diante da literatura. Liam
intensamente e passavam as noites em claro, bebendo, consumindo drogas, ouvindo
jazz e bebop ,e discutindo suas leituras. Veneravam Rimbaud, Baudelaire,
Kafka, Blake, Dostoievski, dentre outros. E compartilhavam uns com os outros os
interesses mais variados e específicos: ioga, psicanálise, hipnose, boxe,
drogas, estudos teóricos sobre a linguagem etc. Promoviam, com freqüência,
saraus literários, onde divulgavam suas obras e recitavam seus textos.
Foi com essa galera empolgada que
Jack empreendeu muitas das viagens que celebrizaria em seu romance On the
road (Pé na estrada). Jack e seus amigos elevavam a literatura a
uma importância tal que buscavam mimetizar em suas vidas as condutas e
comportamentos aprendidos nos livros. O interessante é que é exatamente o
movimento inverso que caracterizará a produção literária desse grupo: viver
loucamente para poder escrever a respeito. Isso significa, obviamente,
fugir de todo e qualquer controle ou comedimento, o que incluía bebedeiras,
orgias, roubos de carro, uso de entorpecentes, peregrinações noturnas em casas
de jazz e muitas, muitas viagens.
Olhando assim, parece que não
passavam de um bando de vadios baderneiros, mas a verdade é que eles
buscavam experiências significativas, elevação espiritual, a turbinação da
mente, o satori.
Kerouac, inclusive, era católico e buscou essa iluminação durante muito tempo.
É nesse sentido que o ab(uso) das drogas assumia o papel de estimulante
da percepção, pois propiciava o desregramento dos sentidos, a alteração da
consciência, a ampliação da experiência. O grupo chamava essa prática de
Nova Visão.
A Geração Beat e seus textos inspiraram
todo um pessoal que surgiu depois. Bob Dylan, Chrissie Hynde e Hector Babenco
fugiram de casa depois de ler On the road. Neal Cassady, o grande
personagem desse romance, dirigiria o ônibus com o qual Ken Kesey (Um
estranho no ninho), os Merry Pranksters e a
banda Grateful Dead
realizariam os Acid-Tests, na década de 60, antes do LSD ser proibido. John Lennon sugeriu a fusão de “beat” com
“beetles” por causa do movimento. Allen Ginsberg viraria um grande mentor na
São Francisco psicodélica.
Sendo assim, não é exagero dizer
que a revolução hippie e o imaginário pop como o conhecemos devem muito a esses
rapazes.
ON THE ROAD
Kerouac escreveu On the
road , em 1951, ao longo de três semanas, doido de benzedrina e café.
Usou papel telex, um papel em rolo, para não ter de se distrair trocando as
folhas na máquina de escrever. O mais icônico de seus romances relata os sete
anos de viagens que fez sozinho ou com o amigo Neal Cassady, dirigindo ou
pegando carona, de Nova Jersey até a Costa Oeste, atravessando o país e
esticando até o México. Desnecessário dizer que suas aventuras incluíam
garotas, álcool, drogas e jazz. Kerouac ia fazendo anotações ao longo do
trajeto e as acumulava na mochila. Elas serviram de rascunho não só para On
the road, mas também para outros romances.
Neal Cassady e Kerouac
Apesar de ser uma obra de ficção, todos os acontecimentos
e personagens de On the road existiram, só que os nomes foram alterados.
Jack é Sal Paradise; Neal
Cassady é Dean Moriarty; Allen Ginsberg é Carlo Marx e Willian Burroughs, Old Bull Lee. Cassady e sua loucura são os grandes personagens do romance, e suas cartas alucinadas e quase iletradas teriam inspirado o estilo caótico que Jack adotou nos livros.
On the road só foi publicado seis anos depois de terminada a
primeira versão, e, durante esse período, Jack revisou, corrigiu e alterou o
texto continuamente. As diferentes
coisas que o autor viu e aprendeu - os lugares e pessoas que conheceu, os
hábitos que descobriu, os relacionamentos amorosos que viveu e as ocupações que assumiu -
contribuíram para a atmosfera cosmopolita do texto. O romance exala um
frescor, um sentimento de liberdade, um apreço pela diversidade, que
acabaram alçando-o ao status de bíblia de uma geração.
ESTILO
Ao longo dos 23 romances que escreveu, Kerouac foi
burilando seu estilo único. Buscava uma “prosa espontânea”, fluida,
verborrágica, delirante, impressionista, sem o fulcro de uma reflexão mais
judiciosa. Esse relato altamente confessional, embora estetizado com
experimentações sonoras, tem muito de lírico. Uma das coisas mais tocantes no
seu texto é a revelação sincera de seus medos e angústias, e a sua
identificação e solidariedade com os vagabundos ferrados, duros, tristes,
maltratados, viciados, apaixonados, abandonados, frágeis, vulneráveis (ufa!),
mas sedentos de vida.
Enquanto lia Tristessa,
sentia-me comovida com a pobre moça corrompida, viciada em morfina, vivendo em
condições degradantes e perambulando com seu amante-poeta pelo submundo
mexicano. O mesmo com Mardou, de Os Subterrâneos - tão magrinha,
tão frágil e tão exótica, com suas roupas extravagantes; tão marginal por ser
pobre, junkie e mestiça na América dos anos 50. Sério. Sentia vontade
de abraçar aqueles trapos famintos e capengas que eram esses personagens. O intimismo
confessional e a prosa poética de Kerouac contribuem muito para despertar
esse tipo de sentimento.
Jack queria que seu texto
soasse como um solo de sax de Charlie Parker, como uma jam caótica,
por isso variava o ritmo, incluía coloquialismos, sotaques, onomatopéias,
assonâncias, aliterações, suprimia vírgulas. Seus parágrafos eram quase
poemas em prosa, mas foram literalmente retalhados pelos editores na
primeira edição de On the road.
O budismo compareceria em vários de seus romances. Como
apontei anteriormente, toda jornada excêntrica em que o autor se lançava era
uma busca por iluminação. Em Dharma Bums, ele descreve suas
oscilações entre noitadas alucinadas na cidade e as atividades junto à natureza
que empreendeu em sua iniciação na filosofia oriental. Jack compreendia o deslocamento
espacial como um processo de desenvolvimento e fortalecimento espiritual.
Experimentou outra cultura e ervas fortes no México. Foi a Paris investigar sua
ascendência.
Nos últimos romances, estava tão comprometido com essa
jornada espiritual e íntima, que foi abolindo os plots e enredos, em
benefício do relato espontâneo e da exploração fonética. Essa fidelidade extrema com os próprios anseios, no entanto, não o levou onde queria chegar.
O FIM DA ESTRADA
O fim da estrada de Kerouac foi
decepcionante. Nenhum de seus demais romances obteve o mesmo sucesso e atenção que On the road. O livro que o tirou do anonimato também lhe legou duras críticas: foi considerado indecente e subliterato. E não lidava bem com o assédio.
Seus casamentos não deram certo, perdeu o convívio com a filha, sua arte não rendia lucros, a crítica não o aceitava bem. Reacionário, votou em Richard Nixon, condenou o uso de drogas, isolou-se do convívio social, tomou implicância com os hippies e passou os últimos dias assistindo à tv em casa com a mãe. Bebia tanto que vivia tendo alucinações. Era um homem frustrado, sem dinheiro, desiludido.
Seus casamentos não deram certo, perdeu o convívio com a filha, sua arte não rendia lucros, a crítica não o aceitava bem. Reacionário, votou em Richard Nixon, condenou o uso de drogas, isolou-se do convívio social, tomou implicância com os hippies e passou os últimos dias assistindo à tv em casa com a mãe. Bebia tanto que vivia tendo alucinações. Era um homem frustrado, sem dinheiro, desiludido.
Morreu aos 47 anos de uma
hemorragia decorrente de cirrose. Seu "erro" parece ter sido o inconformismo, já que teimou em continuar escrevendo e não fazia carreira em nenhuma profissão. Sabia-se desajustado para o american way of life, mas nem tentou se enquadrar, não era capaz. Amargava o ressentimento, no entanto, por ter-se consumido em demasia sem que, em algum momento, atingisse a elevação desejada. Jack Kerouac abriu a estrada para toda uma geração, mas
acabou se perdendo no caminho.
♥ On the road
♥ Tristessa
♥ Os subterrâneos
♥ Satori em Paris
RECOMENDO:
♥ On the road
♥ Tristessa
♥ Os subterrâneos
♥ Satori em Paris
Um comentário:
muito obrigada Aline! :)
gostei especialmente da primeira quote deste escritor. parece ser muito interessante, tenho de procurar alguns livros dele!
Postar um comentário